A despedida da Terra
...Acorde, Dinei, pretende dormir por toda a eternidade?
- ...Onde estamos? Quanto tempo eu dormi? Tudo aquilo aconteceu mesmo?
- Ei! Calma! Relaxe e acorde direito antes de fazer tantas perguntas. Estamos em São Paulo, você dormiu bem e sim, tudo aquilo aconteceu mesmo.
- Eu conheço este lugar...Estamos perto de casa! Finalmente eu verei minha mãe e meu pai, meus irmãos...Minha namorada, poderei vê-la também?
Os dois caminham lentamente em direção ao velório, passando pelo bairro de Dinei.
- Sim. Prepare-se para assistir muita tristeza, Dinei, seus familiares e amigos gostam muito de você. Lembre-se de manter a serenidade, seus sentimentos poderão influenciar um pouco a já enorme tristeza dos seus pais.
- Vou tentar me controlar, mas já sinto um enorme vazio no peito...Penso no que vou ver...
- Verá, infelizmente, muito choro e consternação. Se as pessoas soubessem que não há morte realmente, tudo isso seria inútil e no lugar do choro haveria alegria pela passagem, pois saberiam que seu ente querido teria feito o que foi possível nesta vida, que estaria livre para seguir sua evolução natural. Mas falta ainda algum tempo para essa compreensão.
- É uma pena realmente. Mas vou tentar, com sua ajuda, fazer algo para que eles saibam que eu estou vivo, e estranhamente feliz depois de tudo o que eu vi. Será que entre as pessoas que estarão lá haverá algum médium que possa me ajudar?
- Talvez, ainda não sei se você poderá fazer alguma coisa neste sentido. Vamos aguardar os acontecimentos, está bem? Enquanto isso vamos caminhando até sua casa?
- Vamos, já estou explodindo de expectativa.
- Você já foi a algum velório ou enterro?
- Sim, de dois amigos e um primo. Por que?
- E nunca sentiu nada estranho nesses momentos?
- Não que eu me lembre...Só alguns arrepios, acho.
- É um modo de sentir os espíritos, você vai ver.
- Olha o bar do seu Joaquim, como está cheio! Eu nunca vi ficar assim antes, o que será que está havendo ai?
- Preste mais atenção ao que você está vendo, Dinei.
- Estou vendo o bar cheio, seu Joaquim dando bronca no Mané, como sempre...Mas...Entendi! A maioria é espíritos! Parecem pessoas comuns bebendo e se divertindo. Esse rapaz se chama Douglas, é meu amigão aqui do bar mesmo e esse outro é o Léo, eles estão sendo, como se diz, obsidiados?
- Sim. Olhe como esses irmãozinhos fazem para beber do copo dos seus amigos, sorvendo os fluidos não muito bons que exalam do liquido alcoólico que eles estão bebendo...
- Nossa! Eles parecem que entram dentro dos corpos deles, engolindo juntos a cerveja. Eles não conseguem sentir os espíritos assim tão perto?
- A grande maioria não, só sente os efeitos, mas não sabem que é devido à obsessão de que estão sendo vítimas. Lembra de algumas vezes que você bebia e não ficava bêbedo? Sentia-se enfraquecido e não sabia porque? Você passava pela mesma coisa que seus amigos estão passando. Estes espíritos são viciados, alcoólatras e alguns são bem violentos. Quando já estão saciados, começam a mandar pensamentos de violência para seus obsedados, e se forem fracos vão ouvir esses pensamentos como seus, e invariavelmente, começarão umas brigas.
- Todos que bebem passam por isto?
- Não, nem todos. Algumas pessoas bebem um drinque no final do dia, não fumam, não são bom pasto para esses irmãozinhos, para que então ficar juntos destes, se tem tantos outros que são completamente desregrados? E alguns rarissímos seres conseguem mantê-los longe pelo alto grau moral em que se encontram, mesmo que bebam e fumem, sua luz os afugentam.
- Mas o vício não é um defeito moral?
- Não, Dinei, defeito moral é a maledicência, a mesquinhez, o egoísmo, beber ou fumar são fraquezas do espírito, mas que passarão assim que o espírito se fortalecer.
- Quer dizer que mesmo que eu beba e fume, eu não deixo de ser bom, isto é, eu posso ir para o céu?
- Bem, o céu como você imagina não existe, Dinei, mas sim, você só depende de suas obras aqui na Terra. Porém há algumas coisas que você deve saber. Fumar e beber prejudica e muito o períspirito, o torna muito carregado e doente, e neste estado fica impossível ser ir para esferas mais sutis. É então necessário que este ser passe um tempo no umbral para expurgar o que de ruim acumulou em sua jornada pela vida. O umbral, como você já está pensando, não é como o purgatório católico. Mas sim um lugar limítrofe entre a Terra e os planos acima. Lá é possível se reorganizar e então, depois de ficar mais leve, mais limpo, ir para o destino que mais se aproxima do seu grau espiritual.
- É parecido com a Terra?
- Não. Eu já lhe disse quando estávamos na favela. A Terra é uma dádiva que poucos agradecem! No umbral não há tanta luz. Há uma parte que se vê o sol como num entardecer, já quase noitinha, e em outra escuridão absoluta. Como já lhe disse, só depende da sua plantação na vida para colher o que há de vir.
- Todos têm que passar por lá? Gente como Chico Xavier, por exemplo?
- Sim, Dinei, todos tem que passar por lá, até pessoas missionárias como o Chico, mas depende do grau de cada um o tempo que lá ficarão. Quanto mais leve o espírito, mais cedo ele poderá voar!
- Como é por lá? Eu vou para lá agora?
- Não, você não irá agora, tem compromissos que terá de cumprir ainda. No umbral há várias regiões, Dinei. Em algumas existem hospitais, pequenas colônias de benfeitores, cidades parecidas com as da Terra, mas bem menores. Em outras regiões predominam os maus espíritos, em lugares que só a palavra horror pode definir, ou se aproximar da realidade destes lugares. Ali vivem os rebeldes, que recusam a luz do Pai, por pura ignorância. Lute sempre para se tornar um bom homem, Dinei, e não terá que se preocupar com estes lugares.
- Depois de tudo que estou vendo, só sendo muito burro para cometer os mesmos erros. É claro que quero ser um homem melhor.
- Eu sei que quer, Dinei, porém, você não terá, quando reencarnar, as lembranças tão claras como estão agora.
- Então do que serve tudo isso que estou aprendendo? Se eu não vou lembrar de nada, foi uma grande perda de tempo, eu já podia estar no meu velório há muito mais tempo, oras!
- Aqui está meu velho irmãozinho. Eu disse não tão claras, mas elas estarão lá, seu espírito não vai esquecer nada do que foi dito ou lhe mostrado.
- Como assim, vou lembrar, mas não vou lembrar?
- A intuição. Você não sente, no íntimo, quando alguma coisa está errada ou certa? Você não fica se perguntando se está agindo de acordo com o que você acredita?
- Sim, às vezes. Mas não o tempo todo. Só vou lembrar de tudo isso, assim, como uma intuição? Não tem como deixar estas coisas todas vivas em minha memória?
- No seu atual estado evolutivo, não. Mas não só pela intuição você lembrará, seu mentor vai lhe ajudar na sua jornada pela Terra, lhe dando amparo e lhe ajudando a se lembrar.
- Você já falou dos mentores quando estava-mos naquele centro espírita. Quem são eles e o que eles fazem exatamente?
- Eles são espíritos que lhe acompanharão por toda a sua vida. É através deles que você receberá muitos dos seus ensinamentos, proteção e ajuda nas horas difíceis.
- Eles são os anjos-da-guarda como diz a igreja?
- Não, são espíritos como eu ou você. Nosso Pai designa para cada um de nós, no nascimento, um espírito protetor, que chamam de anjo da guarda, ele nos acompanhará por toda a nossa vida, e além dela, às vezes. Os mentores ou espíritos simpáticos são os que lhe ajudará nos momentos difíceis, lhe dando instruções, lhe ajudando em todos os momentos da sua vida.
- Eles estarão comigo o tempo todo?
- Sim, mas não exatamente do seu lado todo o tempo.
Lembre-se que as distâncias não existem no mundo espiritual como existem no mundo material. Os espíritos se ligam a você por meio de fluidos, podem estar em outros mundos, mas conhecem suas necessidades imediatas.
- Eles são espíritos de luz? Superiores?
- Não. Depende do grau de evolução do assistido. Sempre será um irmão mais evoluído do que o protegido, claro, mas não quer dizer que seja um espírito perfeito, ele também está a caminho da luz. Pense assim: Um homem que vive nos rincões da Amazônia, um índio, por exemplo, não tem as mesmas necessidades de um homem urbano, cuja vida oferece muito mais opções de relacionamento com o bem e o mal. Mesmo o intelecto é diferente, por isso as diferentes escalas de mentores e seus graus de evolução.
- Não entendi muito bem.
- Vou lhe dar nomes para comparação. Um espírito que vem a Terra para uma missão importante, como libertar um povo inteiro, tem a necessidade de muita ajuda espiritual para cumprir esta missão. Estou falando de Ghandi. Ele teve assistência de uma grande gama de espíritos, de vários graus evolucionários diferentes para chegar a termo seus desígnios, sem os quais, as forças contrárias a esta libertação teriam sucesso. Agora, Tunaí, o índio, nasceu para aprender a ter coragem, ser um grande caçador e prosseguir em sua evolução ainda primária, ele não precisa que todos os espíritos que ajudaram Ghandi o ajudem em sua jornada, seu mentor não precisa ter o mesmo grau evolucionário. Dei-lhe exemplos extremos para comparação, Dinei, deu para entender?
- Só como exemplo: Eu poderia ser o mentor do Tunaí?
- Não. Não é uma simples questão de saber mais. Mesmo o mais simples dos mentores deve ter muito amor para este tipo de missão. Na grande maioria das vezes, é um compromisso para uma vida inteira do seu protegido, passando por duras penas junto dele, decepções. É missão muito difícil, Dinei, principalmente quando seu protegido é uma pessoa com grandes necessidades de aprendizado.
- Nossa! Passar a vida inteira com uma pessoa, que, na maioria das vezes, nem sabe que você existe, deve ser um grande sacrifício...
- É uma missão muito meritória, Dinei, e muito instrutiva também para o mentor. A compreensão do espírito que assume este trabalho é clara. Seu amor o torna, senão mais fácil, pelo menos suave, apesar de nem sempre chegar a bom termo.
- Quer dizer, quando as pessoas não os escutam de jeito nenhum, né? E continuam fazendo tudo errado.
- É. Isso acontece e entristece muito o trabalhador. Porém, o mentor sabe que seu aprendiz terá outras chances, e não desistirá dele, a menos que seja para o seu próprio bem. Mas também pode acontecer do assistido evoluir muito em uma encarnação, deixando seu mentor extremamente feliz. E também ir além, necessitando até uma troca de mentores para um melhor aproveitamento da sua encarnação.
- E pode isso? Trocar de técnico no meio do jogo? Até mentor é despedido?
- Que comparação! Funciona assim, meu irmãozinho: O mentor designado desde o nascimento pode necessitar, a partir de certo momento, de ajuda extra para o direcionamento correto do seu assistido. Às vezes o encarnado surpreende e confirma todas as expectativas, ele faz exatamente tudo o que havia sido determinado antes do nascimento, por ele mesmo e seus mentores do plano do qual ele partiu. E como isso raramente acontece, nossos irmãos aproveitam a chance de ajudar ainda mais em sua evolução, mandando outro mentor, com outras atribuições de ensino, para o impulsionar ainda mais. Isto é só um exemplo, Dinei a troca pode acontecer por outros motivos, bons ou maus.
- Entendi. Você é meu mentor então?
- Estou sendo por agora.
- Era quando eu estava vivo?
- Não. Era outro irmão.
- Por que ele não está com a gente agora? Por que não estava lá, quando eu sofri o acidente?
- Ele estava lá sim. E lhe deu um grande beijo de despedida, cheio de amor e esperança. Mas por motivos que não lhe importa agora, eu assumi a partir dali.
- Lá vem você com essa mania de segredos. É irritante! Conta logo o que vai acontecer comigo e pronto!
- Parece uma criança...
- E você um velho chato!
- Eu já lhe disse que nada de mal vai lhe acontecer, não é o bastante por agora?
- Mas Daniel se põe no meu lugar, estou o tempo todo tendo que aprender um monte de coisas, algumas até impossíveis de acreditar, e sem saber porque fica ainda mais difícil, você não acha?
- Não. Você viveu sua vida inteira sem saber porque, e isto sem ficar se perguntando o porque de tudo, qual é a diferença? Estou lhe dando uma gama de conhecimentos que, se tivesse seguido os conselhos do seu mentor, teria aprendido há muito tempo. Portanto, aproveite sua chance ao máximo, e pare de me perguntar isto, saberá na hora certa.
- Está bem, não precisa ficar nervoso.
- Não estou nervoso, Dinei. Preste atenção nestes dois que estão entrando agora.
- São espíritos. O que tem eles?
- Olhe.
O que acontece agora neste bar é muito corriqueiro no plano espiritual. Espíritos muito atrasados e apegados a matéria continuam fazendo as mesmas coisas que faziam antes de desencarnarem, pois nem perceberam a passagem. E a vibração também difere entre vários entes no mesmo ambiente. Como neste assalto, onde há várias entidades em vibrações diferentes.
- “Isto é um assalto! Todo mundo quietinho!”
- “É isso aí, quem se mexer leva bala!”
Dinei fica boquiaberto com o que está presenciando.
- Não entendi nada. Alguns espíritos que estavam bebendo saíram correndo, os vivos nem notam nada, e agora tem um do outro lado do balcão com as mãos levantadas, que coisa doida.
- “Passa a grana aí, imbecil! Vai, rápido!”
- “Tô maluquinho pra furar a cabeça de alguém!”
- “Calma, tá tudo aí, pode levar!”
- “Cadê o resto? Só isso? Você tá escondendo a bufunfa, seu cretino?”
- “Atira nele! Atira nele!”
- “Eu não tenho mais, pode procurar, eu juro!”
- “Se eu descobrir que você deu uma de malandro para cima de mim, eu volto e acabo com você! Vamô embora!”
- “A gente devia ter atirado nele! A gente vamô voltar, viu? Babaca!”
- Eu estou pasmo! Não entendi nada de nada!
- Lembra quando te falei dos diversos graus de vibrações? Pois este é um deles.
- Continuo boiando.
- Estes irmãozinhos, como alguns outros aqui, ainda acreditam que estão vivendo suas vidas normalmente, não sabem que já desencarnaram. O do balcão pensa que ainda é dono do bar, os espíritos que fugiram ainda freqüentam os mesmos lugares de quando estavam vivos na carne, e os assaltantes ainda cometem os mesmos crimes. Os outros que não correram estão em faixa vibracional diferente, nem sabem o que aconteceu agora. Sabem que já não pertencem aos encarnados, apesar de preferir viver entre eles.
- Fantástico! A existência é uma lasanha, camada após camada!
- É uma analogia curiosa, Dinei. Mas sim, a existência é um contínuo, diversas ondas coexistindo, sem se tocarem.
- Quanto tempo eles ficam nesta situação, vivendo estas fantasias?
- Depende de cada um.
- E os mentores destes seres?
- Continuam tentando trazê-los a realidade.
- Rapaz! Que coisa de louco.
- É mesmo uma espécie de loucura. Ficam cegos pela matéria, não crêem que em nada, muito menos em outras vidas. Mas, aos poucos, vão compreendendo sua situação e saindo devagar deste limbo criado pela ignorância e pelo apego as coisas materiais.
- E este tipo de coisa acontece sempre? Tem gente que pensa estar vivendo ainda em uma época diferente? Na época da Roma antiga, por exemplo?
- Sim. Em todas as épocas, Dinei. Mas a grande maioria que está neste presídio da mente está a partir do século 16 para cá. Principalmente 19 e 20.
- Por quê?
- Materialismo. Desde do começo da era industrial até hoje, apesar dos avanços sociais, a cobiça e o orgulho tem crescido de maneira assustadora na crosta. Os homens sem fé pensam apenas em ter, esquecendo-se de ser. Querem ter poder, dinheiro, coisas e mais coisas que jamais levarão para a vida real, onde os valores são medidos pelo que se é, pelo tanto de boas coisas que se fez. E assim, quando estão livres deste mundo, de tão apegados que estavam, nem sentem a passagem e continuam vivendo como se nada tivesse acontecido. Um atraso desnecessário em suas evoluções.
- Quantas vidas desperdiçadas pela ganância, né?
- Sim, mas não são desperdiçadas, com certeza algo de bom virá delas, nada é inútil na roda da vida.
- O amor de nosso Pai não deixaria de ver o lado bom, apesar de eu não conseguir vislumbrar este lado. Eu sei.
- Muito bem, Dinei! Assim que se fala. Para Ele não existe o bem e o mal, o feio e o bonito, certo e errado. Estas concepções existem apenas nos planos inferiores da existência, nos primeiros passos das escolas em que vivemos, para nos ensinar os caminhos da eternidade. Para o Divino Criador tudo é amor.
- É tudo tão novo, tão impressionante. Isto tudo que você está me mostrando, ao vivo e em cores, estava o tempo todo perto de mim. Pena eu ser tão teimoso e não acreditar. Mas, pensando bem, mesmo que eu acreditasse em tudo, não poderia ter tanta fé, não teria vivido esta experiência na carne, seria só um saber de literatura e nada mais.
- Não é bem assim, meu irmãozinho. Claro que sua situação ajuda, e muito, em acreditar. Mas a fé sem o saber é cega. E é cego o saber sem fé. Não é simples ter realmente fé. Ela precisa se sustentar na razão, e a razão só vêm com o conhecimento. E o conhecimento necessita da prática, sem ela o saber é estéril. Por isso nosso Pai mandou a Terra Sua Terceira Revelação, através do Espírito da Verdade, como já havia predito Jesus, quando nos prometeu o Consolador.
- Você está falando de Allan Kardec, né? E dos livros que ele escreveu?
- Sim. Ele codificou a doutrina espírita, ditada pelo Espírito da Verdade, e outros seres de luz. Mas vale te lembrar que ela existe desde o começo do mundo, só que os homens ainda não estavam prontos para entendê-la.
- Por isso Jesus não falou abertamente sobre ela, preferindo falar por parábolas?
- Exatamente. Mas seu santo evangelho é muito claro, quando se lê sob o prisma espírita.
- Eu comecei a ler, mas não terminei. Não acreditei muito...
- Terá outras chances, não se preocupe. Vamos então?
- Vamos. Vou sentir saudades deste boteco, dos meus amigos. Espero que eles venham a conhecer o que já aprendi, que não fiquem perdidos como eu. Bem, chegou a hora da verdade? Vamos para o meu velório agora?
- Sim. Você está pronto? Temos ainda algum tempo, se quiser ir a algum lugar...
- Não. Obrigado. Prefiro ir logo e ver meus familiares.
- Vamos, mantenha-se calmo, ou o mais calmo que conseguir. Suas emoções podem fazer diferença na já confusa situação em eles se encontram.
- Confusa?
- Muitos sentimentos juntos, Dinei. Tristeza, saudade, sentimentos de perda, amor, raiva por lhe perder. Muitos sentimentos.
- Compreendo. Não é fácil para mim, imagino para eles.
- Hoje não é fácil. Um dia será.
- Vai levar muito tempo para a gente festejar a morte de alguém, pelo menos pelo motivo certo.
- É verdade. Mas o que é o tempo, quando se fala em eternidade? Nada. Portanto, daqui a mais um pouquinho de nada, a gente chega lá. Não é aqui que mora sua namorada?
- Ex, né? A menos que ela queira continuar namorando um fantasminha. Vamos entrar?
- Ela não está aí, está no velório.
- Deixei de falar tanta coisa para ela...Se eu pelo menos soubesse que iria morrer, eu teria dito o quanto eu a amo. O quanto me fazia bem sua companhia...
- Todos os recém desencarnados tem o mesmo arrependimento.
- Palavras que nunca mais serão ditas, sentimentos que guardamos com medo de nos expor, agora é tudo que eu gostaria de mostrar.
- É verdade, meu irmão, se as pessoas soubessem o quanto estão perdendo de chances de falar dos seus sentimentos as pessoas queridas. Ninguém sabe o momento de sua morte, por isso nunca é cedo demais para dizer o quanto amamos, o quanto nos fazem bem nossos amigos e familiares. Gestos de carinho são lembrados para sempre, palavras de amor ficarão guardadas nos espíritos das pessoas amadas, como bálsamo nas horas de tristeza e saudade.
- Dou graças a Deus por não ter me casado e não ter filhos seria penoso demais deixá-los.
- Não era seu destino ter filhos, Dinei. Estamos chegando, mantenha a calma, tente não perder o equilíbrio. Lembre-se do que já lhe falei sobre sua influência nos já combalidos sentimentos dos seus entes amados.
- Vou tentar, mas estou sentindo uma imensa tristeza. Não por mim, mas por eles. Meus pais devem estar acabados. Meus irmãos são tão apegados a mim.
- Não se preocupe com eles. Eles ficarão bem.
Eles chegam ao cemitério, Dinei vê vários espíritos conversando e aguardando o sepultamento. Ele se dá conta que nesta jornada ele não viu seus próprios obsessores.
- Quem são aquelas pessoas, Daniel? Não as conheço.
- São espíritos amigos e mentores dos seus amigos e familiares. E alguns são obssesores. Não se preocupe com eles, os irmãozinhos a caminho não vão entrar no velório, os guardiões do cemitério não deixarão.
- Eles estão em toda parte. O nosso passado está sempre nos cobrando nossas dívidas. Você evitou que eu visse os meus irmãozinhos obsessores, né?
- Sim, não lhe seria de nenhuma ajuda. Mas fico feliz com sua compreensão sobre isso, vejo que absorveu bem os ensinamentos.
- Estou com medo de entrar, Daniel.
- Eu sei, meu querido irmão, eu sei. Mas será melhor se despedir agora, do que se arrepender de não tê-lo feito depois.
- Bem...Vamos lá!
Maria, uma das suas irmãs chora sua falta. E surpreendentemente sente sua presença.
- Que jeito estúpido de morrer, e tão jovem! Meu irmão tinha tudo para ser muito feliz...Meu irmãozinho!
- Maria! Queria tanto que você soubesse que eu estou bem e feliz. Minha irmã do coração, minha segunda mãe, espero que possa sentir no fundo da alma todo meu carinho por você.
- Olhe, Beto, estou toda arrepiada, meu irmão está aqui, tenho certeza! Vamos rezar para ele, eu quero que ele saiba que eu o amo muito.
- Daniel, ela conseguiu me sentir!
- Sim, Dinei, ela é muito sensível. Ela tem um grande afeto por você, fica mais fácil assim.
- Olha meu pai, coitadinho, sozinho naquele canto. Quanta dor eu causei por imprudência...
- Não entre nesta faixa vibratória, meu irmão, tente controlar seus sentimentos, lembre-se que sua tristeza pode aumentar ainda mais a tristeza deles.
- É difícil, Daniel. Meu paizinho tão amado. Eu quase nunca dizia que o amava, ele é um pouco durão nestas coisas, por isso eu evitava.
- Mas ele sabe, Dinei. Suas atitudes sempre demonstraram seu amor. Você teve em sua vida um grande mérito: O de ser um bom filho.
- É um remorso que não levarei, graças a Deus. Deus te abençoe, pai, vou sentir saudades, eu te amo muito muito, meu velho. Daniel! Eu posso sentir ele! Eu posso sentir o abraço! O beijo!
- Sim, meu irmãozinho, você pode sentir, mas não pelo seu corpo, que é etéreo, mas pela vibração do seu amor. Você pode toca-lo pelos laços sagrados do coração.
- Ele começou a chorar...Não chore pai, eu estou aqui...
- Ele também pode senti-lo, Dinei, inconscientemente. Quando você o tocou, seu espírito sentiu sua presença.
- Pena ele não saber das coisas espirituais, seria mais fácil para ele. Minha mãe é mais espiritualizada, deve estar sofrendo menos com meu desencarne. Espero.
- Ela está lá fora, falando palavras de amor para você. Ela sofre tanto quanto ele, Dinei, porém não sente tanta dor, sua fé é maior e lhe dá um pouco mais de compreensão.
- Se eu a tivesse ouvido...Deus me deu todas as oportunidades de aprender, principalmente através da minha mãe, e eu, burro, não quis ouvir.
- Não fique assim pelos erros do passado, levante a cabeça, seu aprendizado até aqui tem sido muito proveitoso.
- Sim, eu sei.
- Quanta modéstia!
- Sou o mais humilde! Deixe eu ver o que aquele pessoal está falando de mim.
- Não temos muito tempo agora, Dinei, temos que ir logo. Não perca tempo ouvindo bobagens. Você está aqui para se despedir dos seus entes amados.
- Só um pouquinho, Daniel, por pura curiosidade.
- Está bem, mas seja rápido.
- Venha comigo, Daniel.
- Não. Vou preparar uma última surpresa para você.
- Surpresa? Para mim? O que é? Fala!
- SURPRESA, Dinei! Se eu falar, vai continuar sendo surpresa?
- Calma. Já entendi. Já estou indo...Ola, turma.
Dinei se aproxima de sua velha turma de amigos.
- ...E aí eu fiquei sem um tostão, vem o Dinei com aquela cara lambida dele e diz: Puxa, Luiz, desculpa aí, como eu poderia saber que ela era um travesti?
Dinei sorri.
- Nossa! Você ainda lembra disso? E cara lambida tem o seu pai, infeliz! Luiz, você é um grande amigo, vou guarda-lo sempre no meu coração, com gratidão eterna.
- Caramba! Meus cabelinhos da nuca estão eriçados! Aposto que ele está aqui agora, rindo com a gente.
- Pode apostar.
- Adeus, Dinei, o mundo ficou mais pobre sem sua alegria. Vamos lá fora, gente, vamos tomar uma pelo Dinei. Vamos beber o defunto.
- Aí, que idéia infeliz, Luiz. Você não sabe as vibrações nefastas que isso pode te trazer. Mas compreendo sua intenção e agradeço, meu amigão. Deus te abençoe, seja muito feliz.
Daniel volta e avisa que a hora chegou.
- Venha, Dinei, está chegando o momento de partir.
- Só um pouco mais, quero me despedir da minha namorada, dos meus irmãos, e depois da minha mãe.
- Está bem.
- Oi Aninha, minha menina linda. Quero agradecer pelos seus carinhos, pela sua paciência com este bobão. Te amo, pequenina, e vou levar o seu amor como um presente lindo que Deus me deu. Peço seu perdão pelas vezes que lhe fiz chorar em nome de uma liberdade que não queria perder, só agora eu sei que minha verdadeira liberdade seria ser feliz do seu lado. Adeus, muito obrigado por me amar, farei, se possível, o que estiver ao meu alcance para você encontrar um homem bom que te faça muito feliz. Adeus, Deus te abençoe.
Ele vai ao encontro dos seus irmãos.
- Meu irmãozinho, não chore, pena eu não poder te ajudar com seus estudos, mas sei que você se dará bem em sua vida, você sempre foi um bom menino, guarde só as boas lembranças de mim, viu? Eu te amo, fica com Deus. Beth, irmãzinha, vou te deixar sem conhecer o seu filhinho que está quase nascendo, meu primeiro sobrinho. Eu ia ser o padrinho...Fale sobre mim para ele, mas só as partes boas, viu? Obrigado pelo seu carinho e devoção, pelas vezes que você se colocou entre o papai e eu para que ele não me batesse. Pelos livros que me obrigou a ler, por tentar me transformar em um espírita. Sinto imensamente agora não ter te ouvido, mas com certeza seu filhinho fará o que eu não fiz, eu o ajudarei, se me for permitido pelos irmãos do lugar para onde eu for.
Beth também sente sua presença.
- Adeus, Dinei, se você puder me ouvir, eu te amo, não se esqueça, sua irmã te ama e sempre vai te amar. Deus olhe por meu irmão, espíritos de luz, tomem conta do meu irmão. Adeus, Neizo.
- Beth, eu posso te ouvir, sentir seu coração, guarde meu amor também, como eu queria que você soubesse que eu estou bem, Deus me mandou um anjo me acompanhar, e eu estou muito bem protegido. Só você lembra do meu apelido de infância, irmãzinha amada, só você...
- Venha, Dinei, não chore. Sua mãe está entrando no salão para lhe dar o último adeus, já vão levar o caixão.
- Filho, eu sei que você não está mais neste corpo, mas é olhando para ele que eu vou me despedir de você, da sua presença. Não ligue para toda esta tristeza aqui, nem para as minhas lágrimas, filho, isso é coisa de mãe mesmo. Sei que se você se foi tão cedo, é por que Deus lhe achou especial e queria ter você do lado dele, Lhe ajudando. Nenhuma mãe neste mundo deveria sobreviver aos filhos, e ainda mais um filho tão bom quanto você, mas Deus sabe o que faz. Te amo demais, filhinho querido, quando você puder, manda uma psicografia através da sua irmã, ou de alguém, só para a gente saber que você está bem. Eu sei que vou chorar muito ainda, de saudades, mas caso você ouça meu choro, não fique triste pela sua mãe, a gente nunca esquece um filho. Vou rezar todos os dias para Deus lhe iluminar cada vez mais. Adeus, filhinho amado, adeus.
- Mãezinha! Como eu te amo, como é amargo meu arrependimento.
- Pare com isso, Dinei. Controle-se. Olhe o exemplo da sua mãe, com a alma partida de dor, ela só se preocupa com você, para que você não se entristeça.
- Eu sei, Daniel, ela é linda. Mas não posso deixar de pensar que eu poderia ter evitado todo este sofrimento se fosse um pouco mais responsável.
- Mas não foi. Então esqueça. O importante é depois da transformação pessoal. Você será mais responsável a partir de agora, isto é que importa. Quando se aprende com os erros cometidos, os erros desaparecem.
- Quer dizer que estou perdoado pelo que fiz?
- Claro que sim, Dinei, Deus perdoa tudo com Seu imenso amor. E vai lhe dar as chances necessárias de consertar e acertar onde você errou.
- Obrigado Pai.
- Venha, vamos acompanhar o cortejo até o sepulcro, e lá lhe farei a surpresa.
- Vou abraçado a minha mãe e meu pai. Não se esqueçam que amo muito vocês, rezem por mim sempre. A suas preces serão os meios de nos contactar-mos...Nossa! Como é estranho seguir o próprio enterro. Eu me sinto estranhamente alheio a isto, como se não fosse comigo. Eu não deveria estar sentindo algo diferente, sei lá, tristeza por mim ou algo parecido, Daniel?
- Você sabe que não morreu, meu irmão, por que o espanto de não sentir nada de mais? Aquele corpo nada mais é do que uma roupa que não mais lhe serve. Lembre-se, porém, que não seria assim tão simples seu desencarne sem a ajuda dos seus amigos espirituais.
- Eu estaria até agora pensando que estava todo mundo louco por não me notarem, né? Sem saber que morri.
- E pior, Dinei, você estaria ligado ao seu corpo. Como seu desencarne foi um suicídio não premeditado, suas energias vitais ainda estão fortes na matéria, seus perispírito ainda pleno de fluidos vitais ficaria ligado ao corpo, acompanhando todo o apodrecimento, vendo os vermes se alimentarem. Ninguém se suicidaria se soubesse as conseqüências deste ato contra a Lei de Deus. Outros perigos ainda poderiam existir, como ser apanhado por espíritos das trevas, que se alimentariam dos seus fortes fluidos vitais.
- Eu compreendo os esforços feitos pela espiritualidade nesta caminhada que estamos tendo, Daniel, apesar de não saber por que, eu agradeço muito.
- Sua gratidão é muito bem aceita, Dinei. Venha comigo àquela colina, ali te farei a surpresa.
- Deixe-me olhar uma última vez meus entes amados, quanta saudade já sinto de todos eles...Adeus mãezinha, pai, meus irmãos e amigos fiquem com Deus, guardem meu amor nos seus corações.
- Enquanto descem o caixão, posicione-se sob aquele carvalho. Eis a surpresa: Foi-lhe permitido aparecer aos seus, para dar-lhes um aceno de adeus.
- Jura? Fantástico! Maravilhoso! Incrível! Eles todos saberão que eu não morri. Saberão que eu estou bem. Minha mãezinha vai ter mais paz, todos terão a certeza que eu estou bem e feliz!
- Pare de pular deste jeito ou eles pensaram que estão vendo um macaco, Dinei. Sua aparição também servirá para algumas destas pessoas saberem que a vida não cessa com a morte do corpo. Está pronto?
- O que eu devo fazer?
- Apenas acene e sorria. Quando eu avisar. Antes, precisamos fazer um clima...Uma pequena ventania nos serve.
- Está ficando bonito, com as folhas rodopiando no ar.
- Agora, Dinei.
- Adeus! Eu amo vocês! Adeus mãe, pai, cuide dela, adeus irmãozinhos! Adeus!
- Muito bem, Dinei, acabou. Eles não puderam lhe ouvir, mas entenderam seu adeus.
- Olha só o rebuliço que nós causamos! Coitada da Aninha, desmaiou. Minha mãe está chorando de felicidade, meu pai também. Estão todos se abraçando, ninguém está acreditando no que aconteceu, nunca tinham visto um morto se despedir no próprio enterro.
- Nem todos puderam lhe ver, mas de qualquer forma, você será notícia por muito tempo.
- Imagino!
- Bem, está na hora de irmos, irmãozinho.
- Bem, eu sabia que esta hora ia chegar. Sinto um tremendo aperto em meu coração, Daniel. Eu nunca mais vou vê-los?
- Claro que você os verá. São grandes amigos, antes mesmo de serem uma família na Terra. Ainda se encontrarão na matéria muitas vezes, e mais cedo do que você pensa.
- Acho que ficarei sabendo das coisas agora, né? No começo das nossas andanças eu estava ansioso para saber o que será de mim, qual será meu destino, tinha medo e pressa. Sinto-me diferente neste momento, parece que adquiri uma confiança interior muito forte, acho que posso chamar de fé. Tudo que você me mostrou e falou fortaleceu meu espírito, principalmente o amor que senti em Pacífica. E também seu amor por mim, sua dedicação, modificou meu jeito de encarar as coisas do nosso Pai. Acho que estou pronto para ir, Daniel, seja lá para onde for, mesmo esta tristeza não me impedirá de seguir em frente com você.
- Sua tristeza é perfeitamente normal, meu irmão, afinal você está deixando tudo que mais ama para trás. Mas não se preocupe, você os verá muito em breve. Vamos, tudo lhe será dito. Vamos para o nosso lar.
- Adeus Terra abençoada, adeus amigos, muito obrigado por tudo.
Daniel abraça Dinei com carinho e rumam para seu novo destino.
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